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Criolo: ‘A força do medo é a ferramenta maior do mal’

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Uma porta escondida na Avenida 9 de Julho, número 610, em São Paulo, guarda a ocupação do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) desde 2016. Foi lá que Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, marcou a entrevista com a CULT. Com a música e o clipe de “Boca de lobo” recém-lançados, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, havia muito a ser dito. A “peça de vídeo”, lançada no dia 30 de setembro, até o fechamento desta edição, tinha passado de 1,5 milhão de views. Dirigido por Cisma (Denis Kamioka) e Pedro Inoue, traz referências que vão do assassinato da vereadora Marielle Franco à prisão de Rafael Braga, da manifestação dos secundaristas e da tragédia de Mariana ao incêndio do prédio no Largo do Paissandu, em São Paulo. É a maior crítica audiovisual da atualidade. “Passa um ano, três anos, 20 anos, 50 anos, 200 anos, 300 anos e tudo vai ficando sem resposta. Eles criam um ambiente para que a gente exercite o esquecimento. Ali é praticamente uma linha do tempo recente do tanto de coisas ruins que ofereceram para todos nós”, afirma o músico.

Nascido na zona sul de São Paulo, Criolo viveu os primeiros anos em um porão no Jardim São Bernardo. Depois seguiu com a família para o Jardim das Imbuias, até chegarem ao Grajaú, onde passou a adolescência e a juventude. Foi lá que ouviu o primeiro rap, aos 11 anos, idade em que começou a escrever. Cantou aos 13, no Jardim Maracá; sua primeira vez. Mas o sucesso e o reconhecimento nacional e internacional aconteceram quando ele tinha 35 anos: “É difícil acreditar que coisa boa pode acontecer. Leva tempo. Toda hora acha que vai acordar do sonho, que vão tomar coisas de você”.

Cinco discos lançados depois, aos 43 anos, o compositor de clássicos como “Duas de cinco” e “Não existe amor em SP” já provou que consegue passear pelo estilo que quiser – Espiral de ilusão, de 2017, colocou todo mundo para dançar samba. E, apesar do músico não entregar muitos detalhes sobre a próxima obra, “Boca de lobo” dá o recado, e Criolo também: “O rap nasce do desejo de transformação, de oferecer diálogo, de apresentar caminhos para uma real transformação”.

CULT – A letra de “Boca de lobo” é contundente, assim como a estética do vídeo. É possível encontrar referências que vão de Marielle Franco e Rafael Braga à tragédia de Mariana. Como foi a construção estética e poética da obra?

CRIOLO – Eu estava gravando a letra fazia um tempo, e no momento que a gente decidiu gravar a música, o Ganja [Daniel Ganjaman, produtor da faixa e dos discos de Criolo] quis chamar o Nave [produtor musical] para participar do processo de construção da batida, e a gente sentia que era muito importante ter imagem junto a essa expressão musical. Aí veio na nossa cabeça chamar o Cisma e nisso o Pedro Inoue chegou como um colaborador de uma sensibilidade brutal, e acabou dividindo a direção com o Cisma. Esse rap nasceu de uma série de indignações, uma série de coisas que já vêm me magoando há muito tempo, magoando a minha família há muito tempo. Não é uma ficção, infelizmente. São muitas histórias que fazem com que a gente fique com dificuldade de respirar. A construção desse curta-metragem levou vários meses; ficou tenso e forte. Vai além de ser um videoclipe de canção. São artes que se abraçam, que se complementam. O desejo de expressar para o mundo nossa indignação. As coisas vão passando e ficando sem resposta. Passa um ano, três anos, 20 anos, 50 anos, 200 anos, 300 anos e tudo vai ficando sem resposta. E eles criam um ambiente para que a gente exercite o esquecimento. Jogam para cima da gente uma série de coisas para tomar a nossa atenção e perder o foco. A gente não esquece as coisas ruins que nos fizeram. Ali é praticamente uma linha do tempo recente do tanto de coisas ruins que ofereceram para todos nós. Não adianta achar que você no seu canto isso não te atinge. O mal atinge a todos. E essa peça de vídeo diz isso, que todo mundo vai sofrer. Isso que você alimenta sem querer – ou querendo – também vai te visitar de forma brutal, como visita tantos e tantos brasileiros. E as pessoas fingem que nada está acontecendo.

Tem ali uma crítica profunda e também quase cronológica de acontecimentos recentes. Era essa a intenção?

Falando com Ganja, Pedro e Denis, conseguimos dividir esses pontos de indignação, mais que necessários. É um quadro muito duro, não tem como. Relembrar as pessoas. Não no sentido de que as pessoas fiquem para baixo, de que não tem mais jeito, mas no sentido de dizer: olha, temos total condição de mudar isso, temos energia vital, temos capacidade, temos vontade, temos um querer de contribuir positivamente – todos nós temos – mas criam-se mecanismos para que vá para o ralo essa boa energia, né? As pessoas vão criando mecanismos de sugar a alma das outras. São muitas as ferramentas utilizadas para isso: a impotência, o medo. A força do medo: a ferramenta maior do mal. Quando vem esse abstrato que lhe visita e lhe põe para baixo até você se questiona e fica achando que a culpa é sua. São muitas nuances de como se articula chegar aonde chegou. Como se planeja o mal. Nossa sociedade criou um ambiente extremamente depressivo, destruidor, seletivo, cruel. Um desequilíbrio abissal que vai apresentando seus resultados. É muito duro.

Acredita que por conta desse ambiente depressivo e destruidor, muitos acabam radicalizando e escolhendo o lado “errado da força”?

Uma pessoa que se sente lesada, que tem medo, que sofreu maus-tratos, violência, que é vítima direta do mal, ela tem um sensor de proteção de sobrevivência. E as indignações criam uma energia brutal. É muito duro quando isso o visita. Quando essa energia se transforma em ódio, nós nos afastamos ainda mais da nossa humanidade. Eu falo isso com muita dor e compreensão total de quem vive esse processo, porque só quem apanha sabe. Só quem dorme com medo sabe. A violência não manda cartão de visitas. A violência é a violência. Existe uma série de mecanismos que foram arquitetados há muito tempo para se criar essa situação de guerra, e alguém vai lucrar com o nosso desespero. Com essa sensação de que não tem mais saída.

Em “This is America”, lançado neste ano, Childish Gambino também faz uma crítica profunda à sociedade americana. E aí vem “Boca de lobo”, que escancara as mazelas, injustiças e tristezas brasileiras. O momento pede que o rap volte a tratar mais das questões sociais? Você acha que o rap está fazendo o seu papel nesse momento histórico e político?

O rap no nosso país é extremamente politizado, porque vem dos lugares onde as pessoas mais sofrem. É a camada da sociedade que mais apanha, que mais leva porrada na cabeça e que é extremamente ignorada. Isso não é um conto triste para criar ambiente para entrevista, existem dados e números. Pessoas gostam de gráficos, então… Eles mostram o tamanho da escalada e o aumento do extermínio da população. O rap funciona como se você abrisse um portal para compreender o coração de uma pessoa. Para compreender um bairro e tudo aquilo que tem de lindo e doce como tudo aquilo de ruim que visita aquele canto do mundo. O rap nasce do desejo de transformação, de oferecer diálogo, de apresentar caminhos para uma real transformação. Mas apresenta todo o caos que a sociedade oferece ao nosso cidadão. É áspero, é forte, é contundente.

Essa música faz parte de um disco novo? Você volta ao rap neste momento, depois de Espiral de ilusão, um disco de samba?

Faz parte de um tanto de coisas que estão na minha cabeça há uns bons anos. Eu não sei lhe falar se vai ser um disco de rap. Meu processo é orgânico. Eu estou pensando em música toda hora. Pensando em letra, em rima. Da hora que eu acordo até a hora que vou dormir.

E você registra isso tudo?

Eu vou gravando. Até minha mão ir para o lápis que vai para o papel – essa fração de segundo, esses segundos que se esticam – perco um tanto do que vem. Sinto isso. Estou no aprendizado da escrita. Minha escrita é muito rudimentar, então eu vou gravando. Até a intenção da palavra está registrada, porque às vezes não fica no papel. Tenho que fazer um risco, um desenho na palavra para eu lembrar como que nasceu a intenção daquela palavra, porque ela pode virar outra coisa. O jogo silábico enquanto padrão do que é a norma do alfabeto sugere uma coisa. O valor que é dado à palavra é outro. A ressignificação que é dada à palavra num tempo hoje vivido, ou de recordação de outro tempo que vivi, traz outra impressão. Então a entonação da palavra é tão importante quanto a letra, a sílaba. A memória nem sempre corre de acordo com o fato histórico do pensar. A gente se perde. Vem muita coisa no nervo óptico que quero e que não quero, e atrapalha. A pulsação fonética é tão importante quanto a palavra.

Em 2011 você lançou “Não existe amor em SP”, que acabou se transformando no hino “existe amor em SP” cantado em  manifestações populares. De lá para cá, o que acha que mudou no país?

Eu percebo, grosso modo, é que algumas pessoas que sempre se sentiram bem em alimentar ódio e sentimentos próximos a ele, hoje não estão com vergonha de demonstrar isso para o mundo – que ela se sente bem com o mal. Uns sem perceber, outros percebendo. Quem percebe pode repensar. Mas outros que têm a consciência e assinam embaixo. Meu mundo é meu umbigo e o resto que morra. Toda vez que você alimenta o ódio vai ter esse tanto de coisas que o rolo compressor causa. Esse destruir da alma humana. Nós somos uma espécie muito jovem. Existe uma força linda quando a gente se reúne e reflete. O refletir é importante, mas o ser humano não abre mão do seu bem-estar. Algumas pessoas se sentem bem praticando o mal, mas quando você constrói alicerces para que a pessoa possa questionar o seu viver, possa questionar o porquê de ações, questões históricas e culturais, quando se cria um ambiente de diálogo… Pensar é legal, debater é legal. A gente assim cria ambiente para as pessoas verem se estão curtindo isso ou só indo na onda do mal. Isso foi arquitetado há muito tempo. As pessoas tinham orgulho quando alguém da família dizia que queria ser professor. Hoje, tiram sarro. Começa pelo sucateamento da educação. Escola de qualidade só pode ser para um tipo de pessoa da sociedade. Inventaram que tem pessoas que não estão ligando para educação, que não têm condições de compreender um dia a dia num ambiente educacional saudável. Criaram situações horríveis. Por que a sua criança é melhor que a minha? Separar as crianças é muito cruel. É horror, é assassinato em massa. Ridicularizaram os professores, as pessoas que estão ligadas à arte, quem valoriza e fomenta a ideia de que o processo do pensar é humano, lindo, sadio e importante. É um trabalho arquitetado e ligado a questões econômicas.

Você passou sua infância no extremo sul da zona sul de São Paulo, em um ambiente que pode ser muito duro para uma criança. Como foi para você?

Se for falar pela minha mãe e pelo meu pai, minha infância foi de uma doçura e carinho e disciplina muito fortes, para preparar para a vida. Cresci num ambiente de muito amor dentro do possível naquele barraco no Jardim das Imbuias, em 1974, extremo sul da zona sul de São Paulo. Todas as tensões que você pode imaginar. Você vive o paradoxo dentro do paradoxo. Você muito jovem vê uma pessoa sendo esfaqueada na sua frente, outra levando tiro, mas ao mesmo tempo a sua mãe deixa o barraco mais limpo, mais gostoso, a sua caminha a mais agradável do mundo para que você possa dormir e se perceber gente. Antes disso a gente morou num porão no Jardim São Bernardo. Depois fomos pro Jardim das Imbuias, ficamos seis anos, atravessamos a Teotônio Vilela de novo e chegamos no Grajaú, de 1982 até a vida toda.

Você tem formação universitária?

Eu fiz Pedagogia, Artes, Rádio e TV, mas parava porque não tinha como pagar. Vivia de subemprego, é foda. Entregar panfleto na rua, vender doce no busão, no trem. Várias coisas. As coisas vieram acontecer pra mim na música com 35 anos de idade. Comecei a escrever com 11, cantar com 13, depois de 22 anos veio o lance. É difícil acreditar que coisa boa pode acontecer também. Leva tempo. Toda hora acha que vai acordar do sonho, que vão tomar coisas de você. Mas o rap mostrou que temos força e somos mais que isso. Enquanto uns dizem que somos programados para matar, a arte diz que somos programados para amar.

Você vota em quem?

Não será no candidato que semeia o ódio, você pode ter certeza.

 


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